sexta-feira, 6 de agosto de 2010

crónica de amor

Porque gosto, ofereço!
(Crónica de António Lobo Antunes publicada na revista Visão em Julho de 2009)







Os cães não param de ladrar no jardim, achas que alguém está a tentar roubar-nos? O portão é tão fácil de abrir, as janelas nem grades têm, qualquer pessoa entra aqui com um empurrãozinho e depois os cães não fazem mal a ninguém, só servem para sujar tudo e estragar os canteiros, estou para saber porque carga de água os comprámos sem falar na despesa com o veterinário e a comida, na porta do alpendre toda estragada em baixo, no cocó espalhado na garagem que nos obriga a fazer uma gincana até chegarmos ao carro. E o cheiro, meu Deus, mesmo os miúdos tresandam a cão, respondes-me que todos os miúdos tresandam a cão a começar pelos que não têm cão, faz parte da natureza deles, depois crescem. O problema é que demoram eternidades a crescer e enquanto crescem e não crescem vão escavacando tudo, pés no sofá, tampos riscados, o chichi fora da retrete, molho sempre o rabo quando me sento no aro. E se a gente desse os miúdos de mistura com os cães ou os deixasse na rua na esperança que a camioneta da Câmara os leve? Ficava um de nós lá fora, a tomar conta por causa dos ladrões, metade da noite eu, metade da noite tu, escondidos num buxo, prontos a morder, peço ao dentista que me aguce os pivôs e de pivôs aguçados corta-se madeira com eles, quanto mais um braço, uma perninha. Não me espreites assim que não te faço mal nem estou maluca, os cães dão-me cabo dos nervos e uma pessoa exagera, diz coisas que não pensa, arrepende-se. Bichos e crianças são mais ou menos a mesma coisa sobretudo aos fins de semana, eu o tempo inteiro com eles e tu no interior do jornal a tapares as orelhas com notícias, a leres os suplementos, a encheres o universo de papel, há páginas que caem e avançam tapete fora e depois o jornal é gordo e eu nem um olhar mereço, já nem falo num sorriso, um olharzito de cacaracá, uma frase de tempos a tempos, um elogio. Cortei o cabelo, reparaste? Conheces estes brincos? O bâton rosado? Pensas que os homens não se interessam por mim? Ainda ontem me deram trinta e seis anos, não interessa quem, podes perguntar que não respondo. Estás a ler o jornal ou a dormir? Ainda ontem me deram trinta e seis anos, palavra, e tu há uma semana sem me tocares, trinta e seis anos, compreendes, repara nesta cintura, neste peito, o pescoço lisinho, as pernas sem uma variz, celulite e estrias viste-as, se me apanhassem nua os trinta e seis baixavam para dezanove ou vinte, com um perfume que eu cá sei para dezoito até, nem uma jeitosa de dezoito anos te fala à alma pois não, dezoito anos, palpita, e não palpitas, se um ladrão me levar não dás conta, pensas que tens alguma graça, tu, quase careca, essa barriga, pensas que dizes coisas que se aproveitem, às vezes, ao falares, ficas com esponjinhas de cuspo nos cantos da boca, não existe pior friagem para uma mulher que esponjinhas de cuspo nos cantos da boca, só de lembrar isso enjoa-me, nem sei como aguento, o que terei visto em ti, daqui a nada arranco-te o jornal das mãozinhas e para quê arrancá-lo se arrancando-te o jornal dou contigo e com as esponjazinhas, com os pêlos do nariz que bem podias cortar, quando tentei cortar-tos começaste logo a torcer-te
- Estás a fazer-me cócegas
e não estava a fazer cócegas nenhumas, estava a por-te decente, aposto que na empresa se metem contigo e te chamam gorila, pêlos no nariz, pêlos nas costas, onde é que tu não tens pêlos e a parva da minha irmã a achar-te viril, se ela soubesse do que a loja gasta, como posso ter ciúmes de ti se nem para este peditório dás, há pastilhas na farmácia que ajudam, se te estenderes com uma amiguinha ela
- Então?
e tu, como fazes comigo
- Isto é como um avião, custa a descolar mas depois voa muito alto
e voa muito alto o tanas, mal deixa de sentir a pista aterra, lá vem a desculpa do costume
- Preocupações no emprego
tento ajudar na descolagem e népia, por mais que me esforce, e só falta dar pinos, o avião poisado, se me perguntassem
- Como é que engravidou duas vezes?
a única resposta verdadeira seria
- Como Nossa Senhora
e juntando-nos às duas, a ela e a mim, o Espírito Santo fez obra e graça três vezes, nada mal para um pombo, não estendas o garfo para o cinzeiro que em vez de me acertares com ele vais partir a cristaleira e os cálices de rebordo doirado são meus, vai na volta os miúdos, daqui a uns anos, ainda saem a ti nesse aspecto visto que fisicamente, em lugar de se parecerem com o Espírito Santo, que era a obrigação deles, se parecem contigo, deixa o cinzeiro em paz, deixa o anjinho de mármore em sossego, deixa o atiçador da lareira no sítio que não sou frango de espeto, sou mulher, repara neste peito, nesta cintura, neste pescoço lisinho, nestes tornozelos estreitos, deixa cá ver como está o avião, não me empurres, fechadinho no hangar coitado, eu já desconfiava e de chocolate ainda por cima porque amoleceu com o calor, os cães não param de ladrar no jardim, achas que alguém está a tentar roubar-nos, se um gatuno me levasse era feliz garanto-te, quarenta e cinco anos e dão-me trinta e seis, o médico a preencher a ficha
- quarenta e cinco não acredito
e ao tirar a blusa para a auscultação ainda acreditou menos e isto sem estéticas, sem postiços, tudo meu, tudo firme, não preciso de ginásios, não preciso de dietas, o médico para mim
- Almoço sozinho já viu a minha tristeza?
e eu com pena da tristeza dele, com pena do metro e oitenta, com pena dos olhos verdes, realmente há pessoas infelizes, a cabeça cada vez mais perto do estetoscópio, a respiração dele na minha espinha, a impressão que o queixo me roçou uma ou duas vezes no ombro, não afirmo que roçou, afirmo que a impressão, a enfermeira ao trazer-lhe uns papéis
- Algum problema senhor doutor?
e eu aflita com o nervoso do homem, olhos verdes com pestanas compridas, um after-shave mais caro que o teu que para os after-shaves tenho olfacto, só não tive olfacto ao ir na tua cantiga, cuidado com o atiçador que te magoas, até parece que queres jogar à espada comigo, acaba com as fitas, senta-te no sofá, agarra no jornal que para isso ainda serves, agarra no jornalzinho, não me apertes o braço, não me puxes o cabelo, não faças boca de Drácula, pensa nas esponjas de cuspo e aguenta-te, não me obrigues a correr à volta a mesa que com os saltos não consigo, dá cá o atiçador, pronto, deixa-te de palermices, prometo que peço ao médico a marca do after-shave, aproveitas para comprar na farmácia lentes de contacto que tornam os olhos verdes, ajudo-te as pestanas com o meu rímel, só nos fica por tratar o problema do avião, se calhar lingerie preta ajuda à descolagem, se largares o atiçador faço-te voar alto, juro, se largares o atiçador
- Cri cri cri foguete
minha senhora, é o António. Ensine-me a costurar chapéus, por favor.

Etiquetas:

5 Comentários:

Blogger Zélia Guardiano disse...

Lindo, Maria Ivone!
Tens razão em gostar e fizeste muito bem em postar!
Divides um tesouro comigo...
Muito grata, querida!
Beijo

8 de agosto de 2010 às 14:17  
Blogger Juan Moravagine Carneiro disse...

Que belo texto vc selecionou...

abraço

8 de agosto de 2010 às 19:54  
Blogger Lilá(s) disse...

Este ainda não li mas, vou colocar na agenda.
Beijos fresquinhos e em tons de verde

9 de agosto de 2010 às 16:23  
Blogger Lídia Borges disse...

António Lobo Antunes é inimitável... Lê-lo é como despir vidas e ver "mundos" a nu...
Nem sempre gostamos do que têm por dentro esses mundos, mas ninguém duvida que são assim mesmo.

Falta-nos outro Nobel na Literatura:
António Lobo Antunes.

Obrigada!

9 de agosto de 2010 às 23:30  
Blogger MariaIvone disse...

Lídia

Estou completamente de acordo consigo. António Lobo Antunes, quer se ame quer se odeie, é uma figura incontornável da nossa literatura e o Nobel seria merecidíssimo.

Obrigada pela sua visita. Bjos

10 de agosto de 2010 às 01:41  

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial