segunda-feira, 28 de maio de 2012

palavras ao vento

"Palavras ao vento"
 Regina Pessoa (Desenho nanquim sobre papel)
 








Bate forte a poesia 
Na porta que não havia
Toc-toc aqui estou eu!

Foi como um redemoinho
Palavras inesperadas
Agrupadas pelo vento

No silêncio do momento
O poeta estremeceu...


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quarta-feira, 13 de abril de 2011

O "Amigo Fernando"

por Bruno Nogueira na TSF












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sábado, 19 de março de 2011

saudade...












Pai, tardei em perceber teus medos!


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quinta-feira, 10 de março de 2011

ser vento

0 Vento de Vladimir Kush

No sobressalto do vento
A brisa não nos diz nada
Afaga seara verde
Rodopia devagar
Doce calma vagarosa
Morno sentir prazeiroso
Embalo dengo dengoso
Utopia de Verão
É vai e vem consentido
Assumido de bem querer
É volta por desfazer
É sufoco envolto em pranto
Transporte de dissabores
Marcha lenta inesperada
Volta de esquina forçada
Olhar turvo a contragosto
Pois ser vento era suposto
Acontecer trovoada


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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Diz-me!

Pablo Picasso "Sonho" 
 














Diz-me!
De que são feitos os sonhos?

A quem se dá vassalagem
Para que possam passar
Quem permite o usofruto
Do percurso dos encontros
Que se esfumam nas arestas
Das esquinas contornadas
Num arrasto de vagar
Imagens adivinhadas
No alongar dos olhares
Subidas enfeitiçadas
Mil poeiras no caminho

De que são feitos os sonhos?
Diz-me...
...mas, muito, muito baixinho


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sábado, 12 de fevereiro de 2011

E...

foto: mariaIvone











Quando as vozes
Se deixam de ouvir
E os sussurros parecem
Grãos de areia
O Verão quente
Ameaça sucumbir
Ao silêncio
Que se escuta
Sobre a praia

E...
Na imensidão do nada
As cigarras ocupam todo o espaço
Como se o amanhã fosse Inverno


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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

cor cinzenta

"O quarto cinzento" Maria Helena Vieira da Silva
A forma como respira
Diz de si
Em cor cinzenta

São silêncios meditados
Conflitos agravados
Desajustes de palavras
Mentiras que são verdades
Ainda que falsidades
Mesmo à justa
Rente ao chão
Diz de si
Em cor cinzenta
Como que respiração


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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

os desenhos da carlota

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Porque minha amiga Rossana Massiero, do outro lado do oceano, nos presenteou com uma pérola poética intitulada "P[r]IORIDADE" , retirei este rascunho da gaveta.











Os desenhos da Carlota
Surpreenderam-me!
Lindos
Libertos
Soltos
Exultei na perspectiva
De melhorias sequentes
(Defeito de profissão
Que admite inicialmente
Que toda a aprendizagem
Tem caminho sem paragem
Rumo ao aperfeiçoamento)

Dia a dia
Constatei
O processo ser contrário
O que se sabe
Se esquece
O que está quente
Arrefece
Sem volta no calendário





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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

...

imagem do google










Escrevia poesia porque respirava

Acto involuntário
Que lhe permitia
Oxigenar o cérebro
Mecanizando o pensamento


Pensava poesia porque estava vivo

Acto involuntário
Que voluntariamente
Lhe permitiria
Parar a poesia
A qualquer momento


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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

subida

imagem daqui












Subiu o último degrau
Tão devagar...
Que parecia descer

Não era por não querer
Era medo de acabar

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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Enfim!!!

imagem do google










Será que posso respirar de alívio após este extenuante período de compras?
Espero bem que sim. Estou exausta e não aguentaria nem mais uma visita ao shopping.

Amigos, agora com um pouco mais de sossego e porque senti saudades, desejo a todos vós  um Santo Natal, mil felicidades e...   uma mão cheia de coisas boas.


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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

procura

do google















Procuro aquela que fui
Por onde anda
Onde se alberga
Como acalma os desvarios
Como doma seus caprichos
Como consegue esconder-se
Silenciar seus quereres
Seus fazeres tumultuosos
Suas pressas de viver
Sua mão cheia de sonhos
Entrelinhas, rodapés
Preenchidos ao limite
Como saber onde está
Se na espera do encontro
Nada se encontra de mim

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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

...

gravura de Richard Diebenkorn

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Se o pavio é curto
Não estiques a corda
Fala de mansinho
Anda devagar
Restos do almoço
São sobras deixadas
Não guardes rancores
Prepara o jantar
 
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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

...

imagem do google








Conheço o som
do rio que me acompanha
Nos silêncios
das noites mal dormidas
Incessante
Permanente borbulhar
No bueiro
onde escoa o pensamento

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sábado, 20 de novembro de 2010

sonhos

ilustração daqui








Guardo meus sonhos
Em caixinhas perfumadas

Respiro seu odor
Quando entristeço

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terça-feira, 16 de novembro de 2010

de soslaio

aguarela de Tadahiro Uesugi















Olho de soslaio
P´ro canto onde estás
Apanho teus olhos
Tocando nos meus
Fogem num instante
Negas o encontro
Pareces-me tonto
Mas quizera Deus...

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segunda-feira, 8 de novembro de 2010

silêncio

"Silêncio", imagem do google

Teu silêncio absurdo
Me faz calar
Envolve o espaço
Construindo muros
Negando palavras
Impedindo olhares

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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

tu

Michelangelo, a criação do homem









Quando Deus se distraiu
Ao criar a Natureza
Apareceu tua beleza
P`ra me roubar o sossego

Foi tanto o seu desapego
Nesta sua criação
Que se esqueceu de te dar
Compreensão necessária
Entendimento bastante
Alguma subtileza
Pois beleza não compensa
As falhas do coração


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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

conversas de café

desenho de Bernardo Marques


Nas conversas de café
Sobre maleitas hepáticas
As amigas fazem coro
Descrevendo-lhe o efeito
Enumerando-lhe as causas

Uma dor do lado direito
Ligeira palpitação
Respiração ofegante
Tonturas pela manhã
Um mau estar
Uma agonia
Sintomas de afagia
Hipertensão arterial

Impossível ser diferente
Quando se sente o sentido
Sentimento desmedido
Mal contido
Exacerbado
Quase que desperdiçado
Das conversas de café


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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

soube de ti

"love" ilustração de  Berk Ozturk










Por portas e travessas
Soube de ti
Tua história
Teus tormentos
Teus encantos
Teus intentos

Teus amigos
Diziam teu nome sorrindo
Empolgando teus feitos
Diziam de tuas malícias
Teus poderes
Teus feitiços
Teus defeitos

Era aviso constante
De interdição permanente
E ainda assim...
Caí
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sábado, 16 de outubro de 2010

regresso

Em terras de Capadócia














Ao partir sem avisar
Não implica que o regresso
Não se faça anunciar

Cheguei!

Foi lindo de ver
Foi lindo de estar
Embalo de vento
Balanço de aragem
Viagem de encantos
Momentos
Espantos
Brilho no olhar


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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

ausência

Ausência, óleo e mista sobre cartão, Sérgio Nunes











Fazes-me falta!
Ainda que não estejas
preciso saber que és
Ainda que não me abraces
preciso saber que estás
Ainda que não me beijes
preciso saber
que te posso ter
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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

natália

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Porque ando pouco inspirada, sem tempo,
quase stressada, deixo um poema da nossa
grande poetisa Natália Correia,
Data de 1982  e decorre de uma discussão
sobre o aborto na Assembleia da Républica,
onde  o parlamentar João Morgado afirmou
ser o acto sexual só justificável tendo por
objectivo  a  procriação.  Em   resposta,
Natália Correia, então deputada, escreveu 
e  distribuiu  no  hemiciclo  o  poema que
abaixo se  transcreve,  tendo feito rir todas 
as bancadas  e  levado  à  interrupção  dos
trabalhos  parlamentares.











Já que o coito diz Morgado
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca truca,
Sendo só pai de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou parca ração!
uma vez.
E se a função faz o órgão
diz o ditado
consumado essa excepção,
ficou capado o Morgado.

( Natália Correia - 3 de Abril de 1982 )

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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

cântico negro

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

gota de água

Imagem do google 









Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu


Poema de António Gedeão, uma das minhas referências poéticas

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terça-feira, 7 de setembro de 2010

tu

"apanhando sonhos"- ilustração de Pedro Lucena










Admiro em ti o mito
És o espaço onde os sonhos
Acabam em dia
Não és tu nem ninguém
És apenas aquele que criei
De tanto crer que existia



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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

memórias

os olhos da Carlota









Na transparência do teus olhos
Fixos em mim
Vejo toda a tua vida
A minha
A nossa
Memórias ocultas
De um passado distante
Rompendo a névoa
Que te envolve no presente
Seguras minha mão
Como sempre fizeste
Segredas palavras
Perdidas no tempo
Olhas fixamente
Para além de mim

Vejo na transparência dos teus olhos
Toda a minha vida

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terça-feira, 24 de agosto de 2010

dia de feira

Pieter Bruegel








É dia de feira

Crepita a fartura no tacho
Fogacho de frigideira
Algodão doce
Gaspacho
Cheiros avulsos
Sabores diversos
Quentes e frios
A vários preços
Leves impulsos
Ritmos escaldantes
Vertigens sincopadas
Carrosséis estonteantes
Provas de vinho
Garfadas
Sorteios
Roleta russa
Festejos de ocasião
Foguetes ganhando altura
Canas espalhadas no chão
Gritos
Pregões
Cantorias
Sons dispersos
Gargalhadas
Se hoje é dia de feira
A alegria é costumeira
E a noite será de farra

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terça-feira, 17 de agosto de 2010

a minha mala

Ilustração de Beatrice Alemagna







A minha mala está cheia
De pedaços de papel!

Trago-os comigo guardados
São restos esfarrapados
Recortes de guardanapo
Extractos de conta bancária
Embalagens, envelopes
Bilhetes de autocarro
Pedacinhos de revista
Tudo serve no momento
Como suporte de escrita
Dos pensares e dos sentires
Da poesia aflita
Ansiosa por sair
Da cabeça de quem pensa
Por momentos ser poeta

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sexta-feira, 6 de agosto de 2010

crónica de amor

Porque gosto, ofereço!
(Crónica de António Lobo Antunes publicada na revista Visão em Julho de 2009)







Os cães não param de ladrar no jardim, achas que alguém está a tentar roubar-nos? O portão é tão fácil de abrir, as janelas nem grades têm, qualquer pessoa entra aqui com um empurrãozinho e depois os cães não fazem mal a ninguém, só servem para sujar tudo e estragar os canteiros, estou para saber porque carga de água os comprámos sem falar na despesa com o veterinário e a comida, na porta do alpendre toda estragada em baixo, no cocó espalhado na garagem que nos obriga a fazer uma gincana até chegarmos ao carro. E o cheiro, meu Deus, mesmo os miúdos tresandam a cão, respondes-me que todos os miúdos tresandam a cão a começar pelos que não têm cão, faz parte da natureza deles, depois crescem. O problema é que demoram eternidades a crescer e enquanto crescem e não crescem vão escavacando tudo, pés no sofá, tampos riscados, o chichi fora da retrete, molho sempre o rabo quando me sento no aro. E se a gente desse os miúdos de mistura com os cães ou os deixasse na rua na esperança que a camioneta da Câmara os leve? Ficava um de nós lá fora, a tomar conta por causa dos ladrões, metade da noite eu, metade da noite tu, escondidos num buxo, prontos a morder, peço ao dentista que me aguce os pivôs e de pivôs aguçados corta-se madeira com eles, quanto mais um braço, uma perninha. Não me espreites assim que não te faço mal nem estou maluca, os cães dão-me cabo dos nervos e uma pessoa exagera, diz coisas que não pensa, arrepende-se. Bichos e crianças são mais ou menos a mesma coisa sobretudo aos fins de semana, eu o tempo inteiro com eles e tu no interior do jornal a tapares as orelhas com notícias, a leres os suplementos, a encheres o universo de papel, há páginas que caem e avançam tapete fora e depois o jornal é gordo e eu nem um olhar mereço, já nem falo num sorriso, um olharzito de cacaracá, uma frase de tempos a tempos, um elogio. Cortei o cabelo, reparaste? Conheces estes brincos? O bâton rosado? Pensas que os homens não se interessam por mim? Ainda ontem me deram trinta e seis anos, não interessa quem, podes perguntar que não respondo. Estás a ler o jornal ou a dormir? Ainda ontem me deram trinta e seis anos, palavra, e tu há uma semana sem me tocares, trinta e seis anos, compreendes, repara nesta cintura, neste peito, o pescoço lisinho, as pernas sem uma variz, celulite e estrias viste-as, se me apanhassem nua os trinta e seis baixavam para dezanove ou vinte, com um perfume que eu cá sei para dezoito até, nem uma jeitosa de dezoito anos te fala à alma pois não, dezoito anos, palpita, e não palpitas, se um ladrão me levar não dás conta, pensas que tens alguma graça, tu, quase careca, essa barriga, pensas que dizes coisas que se aproveitem, às vezes, ao falares, ficas com esponjinhas de cuspo nos cantos da boca, não existe pior friagem para uma mulher que esponjinhas de cuspo nos cantos da boca, só de lembrar isso enjoa-me, nem sei como aguento, o que terei visto em ti, daqui a nada arranco-te o jornal das mãozinhas e para quê arrancá-lo se arrancando-te o jornal dou contigo e com as esponjazinhas, com os pêlos do nariz que bem podias cortar, quando tentei cortar-tos começaste logo a torcer-te
- Estás a fazer-me cócegas
e não estava a fazer cócegas nenhumas, estava a por-te decente, aposto que na empresa se metem contigo e te chamam gorila, pêlos no nariz, pêlos nas costas, onde é que tu não tens pêlos e a parva da minha irmã a achar-te viril, se ela soubesse do que a loja gasta, como posso ter ciúmes de ti se nem para este peditório dás, há pastilhas na farmácia que ajudam, se te estenderes com uma amiguinha ela
- Então?
e tu, como fazes comigo
- Isto é como um avião, custa a descolar mas depois voa muito alto
e voa muito alto o tanas, mal deixa de sentir a pista aterra, lá vem a desculpa do costume
- Preocupações no emprego
tento ajudar na descolagem e népia, por mais que me esforce, e só falta dar pinos, o avião poisado, se me perguntassem
- Como é que engravidou duas vezes?
a única resposta verdadeira seria
- Como Nossa Senhora
e juntando-nos às duas, a ela e a mim, o Espírito Santo fez obra e graça três vezes, nada mal para um pombo, não estendas o garfo para o cinzeiro que em vez de me acertares com ele vais partir a cristaleira e os cálices de rebordo doirado são meus, vai na volta os miúdos, daqui a uns anos, ainda saem a ti nesse aspecto visto que fisicamente, em lugar de se parecerem com o Espírito Santo, que era a obrigação deles, se parecem contigo, deixa o cinzeiro em paz, deixa o anjinho de mármore em sossego, deixa o atiçador da lareira no sítio que não sou frango de espeto, sou mulher, repara neste peito, nesta cintura, neste pescoço lisinho, nestes tornozelos estreitos, deixa cá ver como está o avião, não me empurres, fechadinho no hangar coitado, eu já desconfiava e de chocolate ainda por cima porque amoleceu com o calor, os cães não param de ladrar no jardim, achas que alguém está a tentar roubar-nos, se um gatuno me levasse era feliz garanto-te, quarenta e cinco anos e dão-me trinta e seis, o médico a preencher a ficha
- quarenta e cinco não acredito
e ao tirar a blusa para a auscultação ainda acreditou menos e isto sem estéticas, sem postiços, tudo meu, tudo firme, não preciso de ginásios, não preciso de dietas, o médico para mim
- Almoço sozinho já viu a minha tristeza?
e eu com pena da tristeza dele, com pena do metro e oitenta, com pena dos olhos verdes, realmente há pessoas infelizes, a cabeça cada vez mais perto do estetoscópio, a respiração dele na minha espinha, a impressão que o queixo me roçou uma ou duas vezes no ombro, não afirmo que roçou, afirmo que a impressão, a enfermeira ao trazer-lhe uns papéis
- Algum problema senhor doutor?
e eu aflita com o nervoso do homem, olhos verdes com pestanas compridas, um after-shave mais caro que o teu que para os after-shaves tenho olfacto, só não tive olfacto ao ir na tua cantiga, cuidado com o atiçador que te magoas, até parece que queres jogar à espada comigo, acaba com as fitas, senta-te no sofá, agarra no jornal que para isso ainda serves, agarra no jornalzinho, não me apertes o braço, não me puxes o cabelo, não faças boca de Drácula, pensa nas esponjas de cuspo e aguenta-te, não me obrigues a correr à volta a mesa que com os saltos não consigo, dá cá o atiçador, pronto, deixa-te de palermices, prometo que peço ao médico a marca do after-shave, aproveitas para comprar na farmácia lentes de contacto que tornam os olhos verdes, ajudo-te as pestanas com o meu rímel, só nos fica por tratar o problema do avião, se calhar lingerie preta ajuda à descolagem, se largares o atiçador faço-te voar alto, juro, se largares o atiçador
- Cri cri cri foguete
minha senhora, é o António. Ensine-me a costurar chapéus, por favor.

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sábado, 31 de julho de 2010

é tarde

ilustração de Quentin Baillieux






É tarde para que esqueça
Não gastes as energias
Em pedidos de perdão

Não vale a pena chorar
Sobre leite derramado
Podes estar descansado
Vou dispensar o sermão

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